PALESTRANTE: JUIZ ROGÉRIO MARRONE DE CASTRO SAMPAIO
Aula promovida pelo CETRA - Centro de Treinamento e Apoio aos Servidores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, dia 27-11-2012
TEMAS:
- Noções gerais: importância do tema na realidade atual
- Fundamento da responsabilidade civil
- Responsabilidade subjetiva
- Responsabilidade objetiva
- Nova concepção do abuso de direito
- Aspectos importantes relacionados à indenização
- Dano moral e dano estético
Nossa realidade nos faz contratar todos os dias. E as relações tornaram-se mais complexas. Daí a importância da necessidade do estudo da responsabilidade civil.
A responsabilidade civil visa, através da obrigação, a reparação de danos. Danos causados por um...
comportamento, por um ato.
comportamento, por um ato.
Valho-me da obrigação para reparar um dano. Tenho o credor-vítima, o devedor-ofensor e a prestação. O resultado esperado é a reparação do dano.
A primeira grande discussão é sobre a finalidade da responsabilidade civil. Pode-se trabalhá-la como punição?
A responsabilidade civil não existe, no direito civil, para punir, mas para reparar o dano. O efeito punitivo, corretivo, hoje, é secundário.
O efeito punitivo vemos no dano moral. Vamos censurar esse tipo de comportamento.
Se não tiver qualquer dano, posso impor a alguém a obrigação como efeito punitivo?
Não, segundo o palestrante, Dr. Rogério.
Qual a fonte da responsabilidade civil? Porque o devedor é obrigado a realizar uma prestação ao credor? Qual o vínculo?
A origem desta obrigação é diferente da obrigação contratual, em que a vontade é manifestada livremente.
Quando chegamos na responsabilidade civil, que também é uma obrigação, esta surge pela prática de uma conduta ou comportamento, em que a lei impõe o dever de reparar.
A fonte é diferente: é obrigado a reparar por conta de uma conduta. A fonte diferente é que traz algumas peculiaridades.
Basta praticar uma simples conduta, causando um dano, para que surja a obrigação de reparar?
Não. É preciso que a conduta seja reprovável. Ter agido mal. A censurabilidade faz parte do elemento subjetivo. Dolo ou culpa. Uma conduta. Não quis causar, mas a conduta é acompanhada de desídia, de imprudência. Deve reparar. Esta é a responsabilidade civil clássica. Esta responsabilidade civil é de fácil compreensão. É o chamado ato ilícito doloso ou culposo.
Não basta. As relações tornaram-se mais complexas. Não se afigura mais justo que a pessoa, vítima de um prejuízo, não receba indenização, ainda que o causador do prejuízo não tenha agido com dolo ou culpa.
As atividades que as pessoas exercem, remuneradas - se beneficiam de tais atividades -, podem expor outras pessoas a riscos. Isso é cada vez mais comum.
Temos, como exemplo, o transporte de pessoas. Você transporta pessoas como atividade. Recebe dinheiro por isso. E expõe a risco o transportado. Deve arcar com os prejuízos sofridos pelo transportado. Ocorre um acidente. Independentemente de culpa do motorista, sob o ponto de vista social, é justo que o transportador indenize o transportado e, depois, se ressarça.
Na responsabilidade civil objetiva imponho a obrigação de indenizar a alguém, por uma conduta que causou um dano, independentemente de dolo ou culpa.
Partimos da responsabilidade civil subjetiva para a responsabilidade civil objetiva. Entre elas (no período de transição) tivemos a responsabilidade civil com culpa presumida. É a responsabilidade civil objetiva imprópria, que tivemos no Código Civil de 1916. A responsabilidade do dono ou detentor do animal pelos danos por ele causados. Era uma responsabilidade civil objetiva, da qual poderia se eximir o dono, se provasse que tomou todos os cuidados.
A responsabilidade objetiva não é tão fácil de ser digerida. Não é normal impor a obrigação de reparar a alguém que não quis o dano.
A regra adotada é a responsabilidade subjetiva, prevista no artigo 186 do Código Civil de 2003: "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." Este ato ilícito é o ato ilícito clássico, doloso, culposo.
Passo a conviver, também, com a responsabilidade civil objetiva.
Dos vários comportamentos possíveis de causar dano, socialmente, separamos alguns deles:
- compensação financeira;
- praticados de forma reiterada, que expõem as pessoas a riscos.
E abstraio a culpa - dolo ou culpa, em sentido estrito.
Vivíamos dentro de um sistema jurídico fechado e havia segurança jurídica que, entretanto, não deixavam grande poder de valoração ao julgador - a responsabilidade subjetiva era - e é - a regra. A responsabilidade civil objetiva existe nas hipóteses expressamente previstas em lei. Não se trabalhava, como se trabalha hoje, com expressões de conteúdo aberto. Era assim até o advento do Código Civil de 2002. Tínhamos, porém, algumas exceções:
- a responsabilidade civil do Estado - artigo 37, § 6º da Constituição Federal;
- danos ambientais;
- o Código de Defesa do Consumidor e a responsabilidade do fornecedor pelos vícios de qualidade, quantidade ou pelo fato do produto.
Na vigência do Código de 16, convivíamos com esse quadro.
O Código civilista de 2002 transformou o que era exceção em regra?
Não. Ele se modernizou. A responsabilidade civil subjetiva continua como regra. A previsão consta do artigo 927, caput: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo." Ele faz referência ao artigo 186 (o ato ilícito doloso ou culposo).
O legislador imaginou a responsabilidade civil objetiva como exceção, não como regra. Mas não pode ser trabalhada de maneira fechada, taxativa. Isso porque as relações, hoje, são tão complexas que não é possível prever todas as hipóteses em que deve haver reparação.
A responsabilidade civil subjetiva deve ser aplicada sempre que presente o risco da atividade. Se a pessoa estiver exercendo uma atividade e tirar proveito dela, expondo outros a risco, deve responder objetivamente. No parágrafo único, o legislador afirma: a regra está no caput, mas a responsabilidade será objetiva quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direito de outrem:
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."
Admite, portanto, uma valoração pelo aplicador da lei, "sempre que estiver presente o risco da atividade". A função social justifica o tratamento da responsabilidade objetiva. Assim, mesmo que não haja uma lei prevendo, hoje, se o ofensor exerce uma atividade que exponha outro a risco, responde objetivamente.
Subjetiva - como regra - caput do artigo 927
Objetiva - exceção
A responsabilidade civil objetiva passou a integrar o sistema, desde que presentes os requisitos do parágrafo único do artigo 927.
Estávamos acostumados ao sistema fechado por causa da segurança jurídica. Como saber se o juiz vai condenar o réu a responder subjetivamente ou objetivamente?
É um risco. O modelo aberto mitiga a segurança jurídica. Se o objetivo é a justiça, é preciso buscar a equidade, a melhor solução.
O juiz não trabalha com discricionariedade, conveniência. Tem que trabalhar de forma justa e correta. A isto está preso: a motivação da decisão ganha importância. Tem que mostrar a presença desses requisitos. Continua, todavia, sendo complementar.
Responsabilidade civil e o abuso do direito
Previsão legal: artigo 187 e o parágrafo 2º do artigo 1228, ambos do Código Civil, para a propriedade privada.
Trabalha-se com uma concepção moderna. Exercer regularmente um direito subjetivo é normal.
Se eu estiver exercendo meu direito de maneira absolutamente regular, tem sentido se falar em obrigação de indenizar?
O Código Civil prevê, no artigo 188, o exercício regular de um direito e o ato lícito:
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.
Se a responsabilidade civil, como regra, é subjetiva, não se há que falar em indenização. O transportador age regularmente. Mas responde porque é inerente à sua atividade a exposição de outras pessoas a risco.
E o exercício irregular desse direito?
Sou titular de um direito e o exerço irregularmente. Devo indenizar pelo abuso do direito. Também não atendia nossas expectativas, porque era uma cláusula fechada.
Vem o artigo 187: "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes." Ele é aplicado quando exerço meus direitos regularmente. Todo direito subjetivo tem limitações.
Sou titular de um direito de crédito. O devedor não me pagou quando deveria. Nasceu minha pretensão. Posso cobrá-lo de várias formas, valendo-me de uma ação, das entidades de proteção ao crédito, dos cartórios de protesto. Ajo de maneira regular, dentro de meus limites. Se o devedor tiver seu nome inscrito no Serasa, terá um prejuízo, mas não preciso indenizar.
Tenho um imóvel. Faço uma construção que atende o direito de construir. A construção está regularizada e foi aprovada pelos órgãos competentes. Tiro a vista de meu vizinho. Exerci regularmente o meu direito de propriedade.
Se construí ferindo o direito de vizinhança, extrapolei meus limites*. Se cobrei uma dívida não vencida, idem: o próprio código recrimina. Essas situações eram de fácil visualização: o abuso do direito. Vou agregar o exercer o direito excedendo os limites ditados pela boa-fé objetiva: a boa-fé ferida objetivamente. Porque feri direitos de informação, de lealdade, da função social, dos bons costumes, da eticidade. O artigo 187 é uma cláusula de conteúdo aberto. Passa a ser também ato ilícito o exercer esse direito subjetivo, excedendo os limites ora expostos.
* Art. 939 do Código Civil. O credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro.
Tem sentido me valer de um meio para cobrar o devedor sem nenhum proveito para mim, expondo o devedor ao ridículo? Por exemplo, publicando uma matéria no jornal?
Isso já está previsto no Código de Defesa do Consumidor: não se pode cobrar o devedor, expondo-o a situação vexatória.
Encargos condominiais. O devedor é devedor confesso. O síndico, ao invés de entrar com uma ação ou levar a dívida a protesto, trabalha de forma eficaz, colocando um cartaz no elevador: "Fulano não paga condomínio há três meses, mas anda de carro importado".
O devedor entra com uma ação. Dramatiza: "Traumatizou o meu filho, que recentemente aprendeu a ler; minha sogra me repreendeu: "Aí, seu safado!" Foi julgado procedente o pedido. Porque é um abuso do direito, em sua concepção moderna.
Conforme o parágrafo 2º do artigo 1.228 do Código Civil, se você é proprietário, pode usar, gozar, dispor da coisa, mas isso não é possível se não tirar qualquer proveito, em prejuízo de outro:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
Você é proprietário de uma casa com vista para o mar. O vizinho de trás olha o mar toda tarde, da sacada. Um dia, brigo com ele. Decido: "Vou acabar com a vista dele!" Faço uma parede de tijolos, em frente à sacada. Não tem qualquer utilidade. Regularizo a construção na prefeitura. Não devassa a privacidade de ninguém, pois não tem janelas. É absolutamente regular. Qual benefício me trouxe? Qual comodidade me trouxe? Nada. A não ser a desgraça do vizinho.
Ele entra com uma ação demolitória. E ganha. Tal dispositivo legal confere um poder de valoração maior ao magistrado.
Se, entretanto, for preciso subir um andar, fazer um puxadinho, porque a sogra veio morar comigo, o vizinho passará a conviver com outra vista.
Não basta que o devedor saiba que deve. Deve saber, também, quanto deve.
Quando falamos em responsabilidade civil, temos outro problema. Presentes os pressupostos e a obrigação de indenizar reconhecida, tenho que dizer ao devedor quanto deve. Senão não sai.
Porque a fonte é diferente da contratual. Não nasce líquida. É ilíquida.
Quando aperfeiçoo um contrato de compra e venda, as obrigações nascem líquidas. Portanto, não tenho a obrigação de liquidar. Aqui, havendo o prejuízo e a conduta, a obrigação nasce ilíquida.
Nos baseamos na premissa da "integral reparabilidade do dano". Tudo o que for factível para reparar integralmente o dano. Essa é a idéia. Aqui, o primeiro ponto sensível.
Quanto maior o dano, maior a indenização. A indenização mede-se pela extensão do dano. Normal. Convivíamos com isso. O autor teve um prejuízo de um milhão e o réu causou o dano subjetivamente. O juiz julga procedente a ação.
Essa regra fechada, matemática e segura tende a causar certas injustiças. Porque hoje as relações são complexas. São tantas e tão complexas, todos os dias, que quase inevitavelmente devo cometer um erro, que é parte do dia-a-dia. Teria sentido minha ruína? A responsabilidade, pelo ponto de vista social, deveria ser fonte de desgraça para alguém?
Tome-se como exemplo um acidente de trânsito. Bato na traseira do veículo à frente. Na audiência de conciliação, reconheço a obrigação. São apresentados três orçamentos. Não há problema.
Mas imagine um sábado de sol. Vou passear de carro. Tenho um KA, adquirido por leasing, a ser pago em trinta prestações. Vou ao Jardim Europa. Uma distração. Sai uma Ferrari 2013. Afundo a lateral inteira da Ferrari. Três orçamentos: não é possível, pois só existe uma concessionária. Valor do dano: um milhão de reais. Errei. Tenho que me defender. Mas o autor provou o prejuízo: um milhão de reais.
Seria fácil julgar. Quem deve é o devedor? Responde o seu patrimônio. Se eu tiver algum patrimônio, será excutido. Terei que viver algum tempo na informalidade.
A idéia é corrigir essa distorção. Foi o que o legislador fez. O parágrafo único do artigo 944 foi uma das regras mais combatidas do Código Civil:
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.
No caput, a regra: quanto maior o dano, maior a indenização. No parágrafo único, a exceção. É quebrada a segurança jurídica. Mas a segurança é mitigada em benefício da função social. Para evitar que a responsabilidade civil subjetiva seja fonte de desgraças.
O juiz não trabalha com discricionariedade, conveniência. Tem que trabalhar de forma justa e correta. A isto está preso: a motivação da decisão ganha importância. Tem que mostrar a presença desses requisitos. Continua, todavia, sendo complementar.
Responsabilidade civil e o abuso do direito
Previsão legal: artigo 187 e o parágrafo 2º do artigo 1228, ambos do Código Civil, para a propriedade privada.
Trabalha-se com uma concepção moderna. Exercer regularmente um direito subjetivo é normal.
Se eu estiver exercendo meu direito de maneira absolutamente regular, tem sentido se falar em obrigação de indenizar?
O Código Civil prevê, no artigo 188, o exercício regular de um direito e o ato lícito:
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.
Se a responsabilidade civil, como regra, é subjetiva, não se há que falar em indenização. O transportador age regularmente. Mas responde porque é inerente à sua atividade a exposição de outras pessoas a risco.
E o exercício irregular desse direito?
Sou titular de um direito e o exerço irregularmente. Devo indenizar pelo abuso do direito. Também não atendia nossas expectativas, porque era uma cláusula fechada.
Vem o artigo 187: "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes." Ele é aplicado quando exerço meus direitos regularmente. Todo direito subjetivo tem limitações.
Sou titular de um direito de crédito. O devedor não me pagou quando deveria. Nasceu minha pretensão. Posso cobrá-lo de várias formas, valendo-me de uma ação, das entidades de proteção ao crédito, dos cartórios de protesto. Ajo de maneira regular, dentro de meus limites. Se o devedor tiver seu nome inscrito no Serasa, terá um prejuízo, mas não preciso indenizar.
Tenho um imóvel. Faço uma construção que atende o direito de construir. A construção está regularizada e foi aprovada pelos órgãos competentes. Tiro a vista de meu vizinho. Exerci regularmente o meu direito de propriedade.
Se construí ferindo o direito de vizinhança, extrapolei meus limites*. Se cobrei uma dívida não vencida, idem: o próprio código recrimina. Essas situações eram de fácil visualização: o abuso do direito. Vou agregar o exercer o direito excedendo os limites ditados pela boa-fé objetiva: a boa-fé ferida objetivamente. Porque feri direitos de informação, de lealdade, da função social, dos bons costumes, da eticidade. O artigo 187 é uma cláusula de conteúdo aberto. Passa a ser também ato ilícito o exercer esse direito subjetivo, excedendo os limites ora expostos.
* Art. 939 do Código Civil. O credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro.
Tem sentido me valer de um meio para cobrar o devedor sem nenhum proveito para mim, expondo o devedor ao ridículo? Por exemplo, publicando uma matéria no jornal?
Isso já está previsto no Código de Defesa do Consumidor: não se pode cobrar o devedor, expondo-o a situação vexatória.
Encargos condominiais. O devedor é devedor confesso. O síndico, ao invés de entrar com uma ação ou levar a dívida a protesto, trabalha de forma eficaz, colocando um cartaz no elevador: "Fulano não paga condomínio há três meses, mas anda de carro importado".
O devedor entra com uma ação. Dramatiza: "Traumatizou o meu filho, que recentemente aprendeu a ler; minha sogra me repreendeu: "Aí, seu safado!" Foi julgado procedente o pedido. Porque é um abuso do direito, em sua concepção moderna.
Conforme o parágrafo 2º do artigo 1.228 do Código Civil, se você é proprietário, pode usar, gozar, dispor da coisa, mas isso não é possível se não tirar qualquer proveito, em prejuízo de outro:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
Você é proprietário de uma casa com vista para o mar. O vizinho de trás olha o mar toda tarde, da sacada. Um dia, brigo com ele. Decido: "Vou acabar com a vista dele!" Faço uma parede de tijolos, em frente à sacada. Não tem qualquer utilidade. Regularizo a construção na prefeitura. Não devassa a privacidade de ninguém, pois não tem janelas. É absolutamente regular. Qual benefício me trouxe? Qual comodidade me trouxe? Nada. A não ser a desgraça do vizinho.
Ele entra com uma ação demolitória. E ganha. Tal dispositivo legal confere um poder de valoração maior ao magistrado.
Se, entretanto, for preciso subir um andar, fazer um puxadinho, porque a sogra veio morar comigo, o vizinho passará a conviver com outra vista.
Não basta que o devedor saiba que deve. Deve saber, também, quanto deve.
Quando falamos em responsabilidade civil, temos outro problema. Presentes os pressupostos e a obrigação de indenizar reconhecida, tenho que dizer ao devedor quanto deve. Senão não sai.
Porque a fonte é diferente da contratual. Não nasce líquida. É ilíquida.
Quando aperfeiçoo um contrato de compra e venda, as obrigações nascem líquidas. Portanto, não tenho a obrigação de liquidar. Aqui, havendo o prejuízo e a conduta, a obrigação nasce ilíquida.
Nos baseamos na premissa da "integral reparabilidade do dano". Tudo o que for factível para reparar integralmente o dano. Essa é a idéia. Aqui, o primeiro ponto sensível.
Quanto maior o dano, maior a indenização. A indenização mede-se pela extensão do dano. Normal. Convivíamos com isso. O autor teve um prejuízo de um milhão e o réu causou o dano subjetivamente. O juiz julga procedente a ação.
Essa regra fechada, matemática e segura tende a causar certas injustiças. Porque hoje as relações são complexas. São tantas e tão complexas, todos os dias, que quase inevitavelmente devo cometer um erro, que é parte do dia-a-dia. Teria sentido minha ruína? A responsabilidade, pelo ponto de vista social, deveria ser fonte de desgraça para alguém?
Tome-se como exemplo um acidente de trânsito. Bato na traseira do veículo à frente. Na audiência de conciliação, reconheço a obrigação. São apresentados três orçamentos. Não há problema.
Mas imagine um sábado de sol. Vou passear de carro. Tenho um KA, adquirido por leasing, a ser pago em trinta prestações. Vou ao Jardim Europa. Uma distração. Sai uma Ferrari 2013. Afundo a lateral inteira da Ferrari. Três orçamentos: não é possível, pois só existe uma concessionária. Valor do dano: um milhão de reais. Errei. Tenho que me defender. Mas o autor provou o prejuízo: um milhão de reais.
Seria fácil julgar. Quem deve é o devedor? Responde o seu patrimônio. Se eu tiver algum patrimônio, será excutido. Terei que viver algum tempo na informalidade.
A idéia é corrigir essa distorção. Foi o que o legislador fez. O parágrafo único do artigo 944 foi uma das regras mais combatidas do Código Civil:
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.
No caput, a regra: quanto maior o dano, maior a indenização. No parágrafo único, a exceção. É quebrada a segurança jurídica. Mas a segurança é mitigada em benefício da função social. Para evitar que a responsabilidade civil subjetiva seja fonte de desgraças.
- foi uma desídia do dia-a-dia;
- não amassou por dolo;
- há uma desproporção entre a culpa e o dano.
O juiz: "Condeno o réu a reparar o prejuízo, no valor de cem mil reais." Cem mil são razoáveis. O réu pode, de alguma forma, encontrar meios de cumprir a obrigação. E os novecentos mil? Que Deus lhe pague!
Este artigo trabalhou a regra, mas em nome da função social autoriza o juiz a valorar a responsabilidade. Não de forma discricionária. Deve fundamentar.
Este artigo é tão polêmico e inovador no sistema que é pouco utilizado. É reflexo dos novos paradigmas do Direito Civil.
Obrigação da liquidação a reparar dano moral
O dano moral não reflete no patrimônio da pessoa, mas em sentimentos. Trabalha-se com uma lesão a um bem jurídico, que não tem reflexos no patrimônio.
Como fazer, neste caso, a correspondência entre o dano e a indenização?
Quando a indenização tem cunho patrimonial, é fácil. Entretanto, no dano moral, não tenho ofensa patrimonial. Ela tem cunho patrimonial, mas o dano, não. Não se pode engessar, porque os sentimentos não são os mesmos. As hipóteses não são as mesmas. Chama-se alguém de corrupto. Em uma assembléia de condôminos ou no Jornal Nacional. O que se exige do juiz é a coerência. A finalidade é confortar. Porque não se vai restituir à situação anterior. O dinheiro conforta. É dar em dinheiro uma pequena alegria, a quem teve uma grande tristeza.
O juiz pode trabalhar a censurabilidade da conduta e dar um efeito punitivo. Temos prestação de serviços - empresas de telefonia, TV a cabo. Levar em conta a capacidade financeira do devedor. Se o réu é milionário ou se o ofensor é pobre.
Tendo-se em vista a finalidade da norma, avaliando a censurabilidade e a capacidade financeira, confortar.
Às vezes, é mais fácil: o apontamento indevido nos órgãos de proteção ao crédito. O autor apresenta cinquenta e cinco protocolos de impugnação e continua a cobrança da conta.
Mas não se o produto comprado chega atrasado - em regra. Neste caso, para que haja o direito à reparação, é preciso demonstrar o prejuízo.
O rapaz comprou um secador de cabelos. Época de Natal. Não entregaram. Muda a situação. Ele comprou para dar de presente para a esposa. Não há o que pague o prejuízo que ele sofreu. Imagine o que ele ouviu da esposa, que ficou sem presente de Natal!
Dano estético
Lesão corporal, homicídio: o legislador ajuda. "Todas as despesas, até a convalescença e os lucros cessantes." Mas não é só isso. A lesão corporal pode ter deixado sequelas, como a incapacidade para o trabalho. Quanto e até quando indenizar?
O problema maior é a sequela estética. O Código Civil de 1916 previa a deformidade física, a perda de função. Calculava-se matematicamente quantos anos viveria, quantos anos trabalharia, qual a perda.
Hoje, como temos o dano moral em nosso sistema, ficou mais fácil.O homem tem que conviver com uma cicatriz. Se é um ator, um modelo, haverá dano material. Se já era feio e tem que conviver com isso, o dano é exclusivamente moral.
Pode ter reflexos patrimoniais - demonstrados - gerando dano patrimonial e pode ter reflexos morais - gerando dano moral.
Como no homicídio. As vítimas são os dependentes: as pessoas próximas do falecido. Os danos materiais são aqueles relacionados ao luto, como as despesas com o funeral, e a prestação de alimentos a quem ele devia, o que gera uma prestação de natureza alimentar. A prestação de alimentos não é dano moral, mas material, segundo orientação jurisprudencial consolidada do Superior Tribunal de Justiça.
O homem sério gasta dois terços do seu salário com a família e um terço consigo. A prestação será dois terços do que ele ganhava, durante a expectativa de vida.
O dano moral é a tristeza pela falta: a viúva, os filhos, os pais. De repente, temos um litisconsórcio. Devem, entretanto, ser considerados todos os prejudicados para valorar a indenização.
Maria da
Glória Perez Delgado Sanches
Membro
Correspondente da ACLAC – Academia Cabista de Letras, Artes e Ciências de
Arraial do Cabo, RJ.
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